quinta-feira, janeiro 25, 2007

A explicação do Medo










Pequena, era bem comportada. E, por isso, só podia ser um anjo que me seguia pelas escadas, às escuras. Meu pai queria que apagasse a luz e subisse, "para grandes males, grandes remédios". Mas não é assim. Dúvidas persistiam.

Podia ser o "mafarrico" de quem eu ouvia os crescidos falar, sem perceber. De qualquer modo, algo de soturno e rastejante. O "diabo" veio mais tarde. Com a religião. Mesmo sem frequentar igrejas, esse outro anjo expulso do céu perseguia os sonhos, os pecados, as virgens, os tolos (havia um "tolinho" que berrava palavras feias e sempre me diziam que tinha o diabo no corpo).
Os santos eram sempre torturados, nus e pobres. Faziam-me pena, sem susto.

De ser grande, percebi que não tinha medo de ninguém. De nada. A minha coragem era transparente como a verdade. Mil vezes/mil quedas, outras tantas de pé.

Eis, enfim, a explicação do medo, algumas pontas estarão por aí, as coisas indizíveis:

Os precipícios parecem-me bonitos comparados com hospitais. O lixo é-me coerente comparado com a dor que se espalha e nunca se recicla na minha cabeça. A tempestade entusiasma-me mais que um forçado silêncio ou uma algazarra sem sentido. As imagens terríveis das igrejas deixam-me indiferente comparadas com as cenas de guerra. A calma beleza dos cemitérios dá-me um sossego que não existe na rua. A miséria assusta-me mas pode ser sempre limpa e envergonhada, sem se deixar ver. Não estou no olho do furacão nem na fractura da terra.

Então, que medo?
O mal. A degradação moral de tantas pessoas. A banalização do sangue e da violência. A solidão. A doença. O sentir que todos falam outra língua, não a tua, e nunca te farás entender porque os teus gestos se perdem na indiferença das costas viradas ou dos risos alarves.

Por isso, mascarei o meu medo de "Adamastor", antigo e lido em idade aúrea.
Por isso, fui à estátua e admirei-lhe as formas, escolhendo-a, brincando.
Explico-lhe, assim e aqui, o sentido. A hidra de mil cabeças e os pregos dos meus pesadelos. Os meus pânicos, domésticos, privados, junção de todos e outros que inventei ou habitei.

Uma "aparente imagem de medo" que é só imaginação artística.
Para meu descanso: foto tirada na claridade, esconjurando pavor do escuro.

Refúgio de palavra na arte.














27 comentários:

M. disse...

Aqui, a estátua em corpo inteiro ainda mete mais medo. Gostei de te ler.
Um beijo.

Pitanga Doce disse...

O medo é o maior entrave na vida das pessoas. Sorte de quem não o tem ou o domina. Mas como?

beijos sem medo...agora.

Bela disse...

Gostei de ler. Emocionou-me.
Bjs

Maria Azenha disse...

digno de nota luminosa.
não será a consciência, a Luz?

até sempre,

***maat

Anónimo disse...

Palavras e imagens,estas aflitivas pelo que representaram de pavores e angústias na nossa infância.A lucidez do medo que desagua na CORAGEM!
Well done...

Maria Manuel disse...

Belíssimo texto que nos enreda e desenreda nos/dos teus medos!

:-) Nem era preciso este sorriso "de esconjuro", porque a beleza das palavras já arredou todos os males!

Licínia Quitério disse...

Bonito texto. Os nossos Adamastores tomam tantas formas. Há quem consiga exorcisá-los. Pela arte, pela escrita, ou pela revolta contra quem persiste em nos barrar o caminho para oriente.

Beijos.

Tozé Franco disse...

Bonito texto.
Há que vencer os nossos medos...ou pelo menos tentar.

greentea disse...

também não tenho medo , ando , sempre andei às escuras pela casa toda, sempre me levantei para saber o que era um determinado barulho que ouvi, aprendi a escutar e a distinguir e nem em Africa tinha medo nem de conduzir de noite por estradas onde não havia ninguém e era preciso fazer 100 kms para chegar ao aeroporto...
Mas há outras coisas que assustam e fazem doer.

Alberto Oliveira disse...

o meu medo é mais receio
d´em tal medo me perder;
não tem princípio nem meio
nem sítio p´ra me esconder.


Belo exercício o teu.

Óptimo fim de semana!!

Legível.

Isamar disse...

Passei para te deixar um beijinho e desejar um bom fim de semana.Com cheirinho do campo.

Anónimo disse...

Belas fotos e belo texto, em que me revejo! Cheguei a si através do Local. Pena não a termos por cá!

Teresa Durães disse...

eu nunca fui bem comportada :| e também tinha medo do escuro, medo das tempestades e sobretudo medo do que estava debaixo da cama (os meus pesadelos?)

em adulta descobri que o meu único medo é falar e não me entenderem e a eterna injustiça por isso mesmo. a dor, sim, essa que não se vê.

beijos

vida de vidro disse...

Gostei da tua "explicação". Eu tinha (acho que ainda tenho) medo do escuro, das alturas... de tanta coisa. Apelo ao racional em mim para os vencer. Mas nem sempre é fácil... **

Era uma vez um Girassol disse...

Medo...e a sua explicação e imagem!
Muito bem, um texto admirável.
Confesso que tenho medos, pânicos...Quem me dera não os ter!
Beijinhos

teresa g. disse...

O medo esconde-se em cantinhos diferentes da alma, para cada pessoa. Acho que às vezes nem damos por ele, mas ele está lá. É por isso que às vezes os medos dos outros nos dão vontade de rir, são como estas esculturas que dizem coisas tão diferentes a quem as olha.

Obrigada pela oferta, terei muito prazer em aceitar... quando conseguir tirar umas férias! Há dois anos que as coisas andam um bocado mal paradas, e nem para sair das minhas redondezas eucaliptadas tem dado, quanto mais atravessar o mar. Mas quando vejo estas fotos ou quando passo pelos blogs dos nossos amigos açoreanos fico de olhos arregalados! Um dia, espero, todos os dias me digo que a vida me está a viver, ao contrário do que devia ser, e todos os dias continuam na mesma.

Enfim, mudei o blogger e agora recebo os comentários no mail, com formato diferente. Carreguei no nome Bettips e foi ter ao perfil - surpresa é do Porto, aqui tão perto! Porque é que me tinha convencido que estava em Lisboa?!

Beijinhos!

Chanesco disse...

Cara Bettips

Não se aprende a ter medo, mas ele anda por aí, a querer dar-nos lições no virar da esquina.

Belo texto, forte, arrebadador!

Bom fin de semana

Maria P. disse...

Excelente, texto, imagens, a tua harmonia.

O meu medo..., sabes que sempre tive medo de descer escadas? Não sei porquê...imagino sempre que posso não ter força para voltar a subir.
Por isso escolhi aquela foto.

Beijinho e boa semana.

Non disse...

Gosto do que escreves. Sempre. Nem sempre comento. Não sei comentar ninguém.

Eu era mal comportada, diziam... Mas tinha tantos medos. Criados por quêm? o Medo não nasce com o homem.
Excelentes imagens!

Bjs. boa semana

:)

Isabel disse...

Voilá um texto para mim sublime.

Estou ofegante e arrepiada de te ler...
Sabes porquê?

Identificação.

Muita identificação.

Excepto no bom comportamento, eu nunca fui bem comportada.

Mas tambem eu tinha uma coragem transparente como a verdade. Caia levantava-me, caia levantava-me , com mais ou menos custo sempre me punha de pé.
O medo do que "normalmente" se tinha medo não existia para mim, as bruxas os feiticos, os fantasmas , o homem do saco nada disso me assustava. Existiam desafios cada vez mais dificeis que até ajudavam a quebrar a monotonia que algumas vezes a solidão traz consigo.
Os precipícios, como eles me atraiam, as tempestades , as ventanias.
Medo tive do homem, da maldade humana, medo de ficar só semos meus pais, medo de me rotularem de diferente sempre e isso não parar nunca, medo de nunca poder fazer nada para ajudar a terminar aquilo que me assustava... a indiferença dos seres em relação aos outros, a falta de entendimento, as linguagens diferentes que parecemos falar e ninguem quer aprender a linguagem do próximo, medo dos julgamentos que servem para nos matarmos uns aos outros, medo dos dedos humanos apontados a outros humanos. Como se humanos não fossemos todos.

Pois é fiz como tu do meu medo força.

E estou de lágriam no olho lendo-te e escrevendo... lembrando como foi duro chegar aqui.

Linda e forte e corajosa a tua refelexão.

Obrigada.

Isabel

rach. disse...

Também tenho saudades de ti e da tua palavra/música
o comentário fica para amanhã que estou a morrer de sono...
a respiração fugiu quando vi a arcanja ilha verde
:-0)
beijo
Rach

rach. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
rach. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Teresa David disse...

Um texto muito bem escrito e onde facilmente se sente os temores que te povoam, ou povoaram.
Parabéns
Bjs
TD

Fragmentos Betty Martins disse...

Olá Voltei:))

O meu comentário de hoje, tem que ser assim um simples – olá e um muito sentido – obrigada – pela visita na minha ausência.

Isto é para eu ter tempo de visitar a todos.

Beijos com muito carinho

o alquimista disse...

Soberbo texto...medossão entravas entre o pensamento e o querer...

Sempre que a tarde cai soltam-se as amarras ao pensamento, sente o encanto da brisa, olha o sorriso da lua...
Desejo-te uma semana cheia de sonho, de mil venturas.


Doce e terno beijo

Diafragma disse...

Impressionante o teu texto.