A dormir. Tal como no terramoto de 28.2.69.
Com a inocência da noite e os sobressaltos do dia. Trabalhar.
O meu emprego era num sítio fino onde a maioria das pessoas eram grosseiras. Os patrões-patrões, acima da pirâmide: é incrível a quantidade de coisas que me lembro desse tempo, do fosso entre essa gente - eram vários, famílias...-, os "lambe-botas" e "os outros". Um chefe-chefe, pequenino e voraz, um fiscal, um torturador de mentes, à antiga portuguesa, se dizia.
Uma das amigas à época que tinha alguém de família no exército, tinha-me falado no Levantamento abortado das Caldas, em 16.3.74, mas não eram notícias vinculadas por gente "de confiança". A maioria de nós sobressaltou-se: o tempo negro em que se viveu, habituara-nos às informações deformadas, especialmente no que se referia às notícias políticas. O que se conseguia saber passava de mão em mão, de boca em boa, em segredo, tal como o cinema, os livros, jornais...
O terror estava bem instalado.
E eu nunca tinha ido a Lisboa. Lia "O Diário de Lisboa" quando o esperávamos, ao fim de tarde, lendo as entrelinhas, as entrevistas, a intelectualidade e os nomes que nos diziam algo, adivinhando.
A pressa da manhã, a precaridade dos laços laborais (sim, havia e muito!) e os horários: cedo, ao chegar à porta do prédio, encontrei um "velho republicano", colega, que me disse "parece que houve alguma coisa em Lisboa, não se sabe bem". Rádios, internets, telemóveis ou mesmo chamadas telefónicas em horário de trabalho, não existiam nem eram permitidos.
Só à hora de almoço consegui saber pormenores. A alegria invadiu-nos como uma onda. Lembro-me que levei um rádio portátil, à tarde, o que foi o primeiro acto de acobardada rebeldia...
Muitos acontecimentos se seguiram que me iriam pôr à prova: não posso dizer que, pessoalmente ou à minha família próxima, o 25 de Abril me favoreceu, pelo contrário: todo o ambiente em que me movia era um espartilho vigilante e, em muitos aspectos de trabalho, as coisas e relações pioraram muito.
MAS: havia a esperança, uma espécie de fervor que nos tomava (fora das horas de serviço!!!) e transportava para um país em mudança. Logo viriam notícias de amigos de quem não sabia nada há anos: foi um dos meus primeiros pensamentos: "eles podem regressar"!
ah... e a rua, a rua, finalmente muita gente feliz, na rua!
Um privilégio, termos vivido nesse tempo de enormes transformações.
Se me repito não sei. Impossível imaginar como seríamos.
Há 44 anos que o 25 de Abril nos tomou, pelas mãos, pelos cabelos, pelas lutas.