quinta-feira, agosto 17, 2006

Por falar em...


Anos 60. Como hoje um dos amigos lembrou e artistas pintaram com a possível raiva, ou a impossível raiva. Como se escrevia em camuflagem (se fosse muito inteligente, ou aborrecido, ou cómico, haveria de passar na censura!). Que eram as alternativas, para nós. Pois era: para cantar, sem ser o fado do "Crime e Castigo", tínhamos de nos juntar num pinhal. E nem sequer se falava, explicitamente, contra a ditadura, ou o Salazar, ou a guerra ... assim, com tanta gente e não se sabendo a proveniência de todos ... Líamos poemas

"Luísa sobe
sobe a calçada ..."

Cantávamos baladas

"Pergunto ao vento que passa..."

Lembrei-me então da fotografia datada desse tempo sombrio.
Por aí estará o Mário Viegas. Paz na sua bela voz, saudade da sua diferença.
Ponho-a aqui e não é minha. Mas é um esconjuro. Lembrei-me dela, exactamente dela, não em nome da liberdade que usamos como um chapéu mas das ideias que hoje podemos trocar cruzadas.
Para gente muito nova não será explicável.
Éramos, também, pobres e soturnos. Podermos rir alto era um luxo e olhavam-nos mil olhos. Por isso, ríamos e cantávamos num pinhal.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Retorno




As tuas guerras interiores consomem-te
(claro que não tens a casa destruída nem andas sobre vidros partidos
a reunir pedaços do tempo)
Por isso pensas que as tuas batalhas não têm dó nem tréguas
(pois que se vivesses alhures sentirias como o fogo pode romper a carne
e estilhaçar a pedra)
Tens amigos que morreram desaparecidos em combate ausentes em parte incerta
ou prisioneiros de outras vidas também coerentes
(contudo não vês cruzes todas iguais e brancas a sumir-se no horizonte)
Não consegues que a tua bandeira de vida seja vista como sinal de paz
(antes a confundem com um acenar de louco em janela de grades)
Sentes que a dor está só
contigo
(mas se nem um dos teus dedos cortados
sangra)
Revoltas-te que sejam outros a decidir por ti
te invadam
(todavia não morreste enquanto espantalhos se reuniam em mesas redondas)
Preferes um silêncio à mentira da piedade laica
(mas a tua sede não está longe da água e da garrafa, da fonte e do rio longo)
Tocaram-te os medos e o escuro na jaula
(e vê que da janela as tuas ruas conservam os passeios e os sentidos)
…repara então que tudo tens intacto …
para amanhã igual
e o igual tem um certo senso
de coisas conhecidas
São as tuas guerras de lava
que te ardem
que te cansam
não destruíram o essencial
Só és virgem incrédula no deserto
como chapim chegado ao pinhal queimado
e contudo ave
azul
preparada para voar mais longe

Hoje choveu-te e tu Terra respiraste um longo alívio
tal como se regressasses
a casa
….

quinta-feira, agosto 10, 2006

Este escrito não é

Esta pessoa não existe não há.
Hoje quer ser macaco “não ver não ouvir não falar”
Servem terror ao pequeno almoço
Incêndios ao almoço
Mortos e ruínas ao jantar
Por menos que veja televisão por menos que leia jornal por menos que ouça rádio aprecio a informação do que me é fundamental
Tenho uma posição desde que me conheço pelos mais fracos e mais feridos pela vida ou circunstâncias povos homens bichos rios arvores países campos
Hoje a pena é tão grande grande que não sei geografia nem tenho espaços pontos interrogações ou exclamações ou sequer boas recordações de viagens ou amigos
Procurei uma fotografia e todas tinham esperança e vida: queria uma que fosse retrato do nada uma que vi em filmes, talvez do Wim Wenders um deserto pedregoso e infinito onde rolam novelos de ramos secos empurrados por ventos de pó
Ou o quadro do “Grito”
Ou a aguarela de “Naufrágio”
Ou as “Portas do Inferno”
Não há terapia só tempo passando

sexta-feira, agosto 04, 2006

Menina, que só se ri no jardim


"Though
nothing can bring back the hour
of splendor in the grass,
of glory in the flower.
We will grieve not
but rather find
strength in what remain behind"

William Wordsworth (poeta inglês, 1807)

Poema transfigurado para o argumento do filme "Esplendor na Relva".
De volta a uma infância, onde o riso era fácil. Uma adolescência onde a felicidade era uma lânguida tarde no pinhal. Areia que luzia nas dunas e se agarrava à pele. Poemas que recitavam amores verdes. Canções que falavam de outros países onde o romantismo era a "flower/power". Tudo o que de profundo nos deixou a todos, esses anos 60.
Essa menina só se ria quando estava só e no jardim. Fui buscá-la pela mão da memória e aqui a deixo. Para lhe eternizar o sorriso e lembrar um tempo que era ameno.