quinta-feira, outubro 19, 2006

Sequência

... da palavra Alegria que convite foi há semanas. Fuga ao interior de nós. Para quem não vê o mar ou não o ouve. Para quem está preso no tráfico da vida. Mil ideias.

Uma competição de sentires e olhares (não penso entrar noutras). Aqui o prémio é o gosto de ver. É o gosto de pensar palavra e sair imagem. No lugar da M. do Palavra puxa Palavra correm mansos os protestos, a flor, a casa, o muro, a luz. Divertimo-nos e imaginamos quem, do lado da objectiva, colhe o momento. Diferentes são mas todos especiais. Ponho-me a idealizar quem capta o quê, descubro que muitos de nós pensam o mesmo, da beleza, das crianças, da natureza, da amizade.
Isso contenta-me o tempo, hoje cinza.
Esta foi a imagem que destaquei para "Alegria" e é a sequência dum fim de tarde. Com o instinto, pensei-a, nem a escolhi.
O Pescador não ouvia nem falava, fez-se-me entender por gestos e foi o diálogo mais bonito desse fim de tarde. Ele pescava e eu via, atenta à onda e ao pôr do sol. Quando veio o pequeno peixe, rimo-nos ambos como garotos! Eu saltei nas pedras, o cãozito dele ladrava desalmadamente, o mar rugia avançando em maré cheia e era, como se vê um bravo belíssimo mar do Norte.
Esta fotografia é um quadro que me vai ficar no coração. A simplicidade dum pescador e eu, ambos no fim de tarde. Assim, desamparados de tudo e da realidade. Um quadro de nada, deficientes do mundo, de culturas tão dissemelhantes, felizes ao ver um peixe prateado, o oposto ao dourado da tarde. Por gestos, falei-lhe do perigo e das ondas que quase nos molhavam. Ele pôs a mão a meio metro do chão e percebi que pescava desde pequeno, ali pelas rochas. Serenamente pensando. Em que pensas, pescador?

Eu não sei tratar fotografias, esperar a oportunidade única, escolher objectivas, distâncias, luz. Aprecio o momento que se cristaliza, não a obra de arte. Ela surge pelo instinto e a consciência do "agora", neste sítio, nesta hora. Por mim, humilde, acho. Assim gosto de pensar.
Gosto do Gageiro, do Sebastião Salgado, do Paulo Nozolino, dos fotógrafos da escola Magnum e dos todos da National Geography. Desses, amo tudo, essencialmente pelo olhar e a consciência que sei existir atrás da câmara. Para mim, humilde, indissociáveis. Assim gosto de pensar.

A minha primeira máquina, mesmo minha, foi uma Olympus todo o terreno. Todo o terreno porque caía, às vezes em qualquer terreno, mas tirava fotografias com chuva, com sol, com amor. Perdi-a ao fim duma tarde de Fevereiro, em St. James Park. Comprei logo que pude uma igual. Pessoas riem desta "mania", gente a quem nunca vejo uma fotografia de nada, só casamentos, baptizados e essas socialidades. Os profissionais têm milhares de explicações e com esses nem discuto. Faço-me de mim, como eu sou.
Experimentaram dar-me uma mais complicada e eu passei agruras com as regulações. Umas vezes sim, outras às vezes. Até que apareceu o presente de Natal, trezentos euros de prazer continuado. E é só assim, até esgotar memórias. Há muitas maneiras de pensar: eu sinto que também penso com a minha máquina de fotografar.

6 comentários:

Teresa Durães disse...

De máquinas fotográficas não percebo nada; tão pouco fotografia. O fotógrafo é o filho.

No meu trabalho tenho lá muitos surdos-mudos. Só dois aprenderam a falar. Sei alguns gestos com os quais comunico com eles. Muito poucos porque sou muito má em línguas.

Na língua deles não há passado ou futuro. Têm um gesto para dizerem ontem, "muito ontem", amanhã, "muito amanhã". Cada um identifica-se por um gesto que é o seu nome.

Em Lisboa os dias da semana são conforme o almoço da escola onde andavam. No Porto é diferente. Ou seja, não conheço os nomes mas segunda pode significar "bacalhau".

Tenho alguma dificuldade em conversar com eles porque falam mesmo outra língua. Só coisas simples do dia a dia.

Teresa Durães disse...

A rotina é o que me custa. Principalmente a que estou a passar. O meu trabalho vive à base de projectos e neste momento não tenho. Coisas poucas, rasteiras. Sinto-me não integrada. Custa sair de casa nun esforço, chegar e nada.

Nada nada nada. Há tanto para fazer e nada.

Gostava de ver antes as tuas ondas!

Boa noite para ti. Não há céu no metro

armandina maia disse...

Também tive uma Olimpus, comprada em 2ª mão, no tempo em que fotografar me dav a asensação de criar qualquer coisa apartir de quase nada. Depois, deixei isso para outros. É um canto que não sei cantar. Talvez por isso, tento captar os instantes com palavras, como se às vezes, elas fossem só minhas.Parabéns!
armnadina

Era uma vez um Girassol disse...

E que bem que pensas e captas o teu olhar...
Também pouco entendo de fotografia, sou até preguiçosa para andar de máquina em punho!
Adorei a tua história de poente enfeitiçado, do pescador, seu peixe prateado e sorriso simples.
Coisas bonitas...
Parabéns!
Bjs

Pitanga Doce disse...

Ih, vejo que o problema não passa só por mim! Tenho uma Pentax que tira belas fotos. Os filhos dizem que preciso me acostumar às digitais. Huuum! Sei, não!

beijos fotográficos

M. disse...

Texto belíssimo. Gostei muito.
M