quinta-feira, março 11, 2010

O peixe









(Este assuntonãoésobre comida; é, uma vez mais, sobre sentimentos obscuros)

O sável está pendurado num gancho (esquecendo que está morto), goteja do seu interior vermelho que não vemos. O peixe veio do mar, andou e nadou, volteou pelo rio acima, contra corrente. Para desovar, cumprir leis da sua natureza.

Acaba frito em postas fininhas: que trabalheira para tão pouco resultado! Agradar ao paladar sazonal: quem diz paladar diz "aos poderes e haveres instituídos", do mais forte, do mais esperto.
Deixou-se apanhar nas malhas duma rede imprevista.
Alguns safam-se - continuam a espécie. Apesar das barragens.

Poderia descrever "a vida de um sável que acaba frito, apesar de tanto ter tentado fugir ao destino normal dos peixes, empregados e afins". Mas isso sou eu, com as minhas toleimas - ou existe outro ego gémeo que está sempre a encontrar similaridades. Não invento: sinto o peixe.

Com esta curiosidade de perseguir traços, fui ver: antigamente (é mais um peixe em vias de extinção e ameaçado pela poluição, etc) chegava a subir o Reno por 850 km, do mar do Norte até Basileia...
Pronto, está visto que aqui nadam menos e vai havendo sável.
***
Nesta ocasião Fevereiro/Março, há décadas atrás, íamos à Ribeira, eu e o meu pai. O sável chegava ali mesmo, ao cais, pelos pescadores que se afadigavam durante a noite - um mar-rio de peixes prateados, vivos cheiros e vozes, na discussão dos peixeiros e (pobres, era um peixe de pobres) compradores. Trazia-se então, a pé, enganchado nos dedos, exactamente como está pendurado na fotografia. Vejo-nos a subir, a subir o Porto antigo com o sável pendurado, eu quase do tamanho dele.

12 comentários:

Maria disse...

São boas as tuas memórias, Bettips.
Mas a mim ninguém me tira o superior gozo de ir comer umas postas bem fritas com açorda de suas ovas já para a semana. Ontem foi lampreia, e isto não é para todos os dias...

Vens?

Beijinho.

Justine disse...

Cada vez são menos, os peixes que escapam às malhas apertadas deste quotidiano cada vez mais difícil, seja ele no mar ou na terra...
(apeteceu-me fazer uma leitura arrevesada...)
Beijinhos

bettips disse...

Justine: a tua leitura a fazer o pino foi igual à minha escrita de pernas para o ar.
E longe de mim renegar um bom escabeche - sável, ou como diz Maria (e não Molero) postas fritas-supra-finas com açorda delas, ovas.
O destino do meu "sável" não tem nada a ver com isso!
Abçs

Manuel Veiga disse...

sabores colados ao (bom) gosto.

nem o sável se salva.
embora teime. contra a corrente...

belas as tuas metáforas. sempre...

grato. beijo

Lola disse...

Bettips,

Com saudades imensas das memórias que nos são comuns, porque crescemos na mesma cidade...

Também trazíamos azeitonas da Ribeira.

Ao Sábado.


Linda a escrita fotográfica que nos ofereces.

beijos grandes

Artur Gonçalves Dias disse...

como é agradável desfiar as (suas)
palavras
memórias
pelos olhos
embevecidos


Saudações

Maria P. disse...

"Alguns safam-se - continuam a espécie. Apesar das barragens."

Pois é...

:)Beijinho*

Licínia Quitério disse...

"Sigamos o sável" - disse O'Neil.

No outro meu tempo, anualmente o seguia em restaurantes da borda d'água. Ficou o sabor na memória desse tempo.

Mr. Lynch disse...

Bettips;
Para mim os peixes são para isso mesmo: embelezar os nossos rios. Mas enfim, há quem mais os aprecie no prato...
Um beijo

jl disse...

Mesmo dum assunto do dia a dia, quiçá trivial, se pode fazer uma boa postagem.
A reflexão é propositada. A parábola, possível.
A intenção é muito importante: neste caso, por mor da posta sai um bom poste.

Alien8 disse...

A Ribeira,
o sável que se safa,
o sável que não se safa,
as postas fininhas, fritas,
as tradições,
as contradições.

Abraço.

Fernanda disse...

E, sabes que este mês se transforma no mês do sável, aqui na minha terra...:))
São vários os restaurantes que participam, sendo que ementa a concurso, como não podia deixar de ser, o inconfundivel sável e açorda feita com as ovas.
E, é uma pena que este peixxe do qual eu gosto tanto e que também tenho boas memórias, porque o meu avô o pescava aqui no Tejo, no tempo em que ele subia o rio e havia em abundância, e eu adorava açorda feita pela minha mãe e tias. Agora, tal como dizes é um peixe quase em vias de extinção.
De qualquer maneira fica as memórias e os bons sabores e cheiros...:))

Abraço